” Se o outro for bom para você.
Se te der vontade de viver.
Se o cheiro do suor do outro também for bom.
Se todos os cheiros do corpo do outro forem bons.
O pé, no fim do dia.
A boca, de manhã cedo.
Bons, normais, comuns.
Coisa de gente.
Cheiros íntimos, secretos.
Ninguém mais saberia deles se não enfiasse o nariz lá dentro,
a língua lá dentro, bem dentro, no fundo das carnes, no meio dos cheiros.
E se tudo isso que você acha nojento for exatamente o que chamam de amor?
Quando você chega no mais íntimo,
No tão íntimo, mas tão íntimo que de repente
a palavra nojo não tem mais sentido.[…]
O que é que você queria? Rendas brancas imaculadas?
Será que amor não começa quando nojo,
higiene ou qualquer outra dessas palavrinhas, desculpe,
você vai rir, qualquer uma dessas palavrinhas burguesas e
cristãs não tiver mais nenhum sentido?
Se tudo isso, se tocar no outro,
se não só tolerar e aceitar a merda do outro,
mas não dar importância a ela ou até gostar,
porque de repente você até pode gostar,
sem que isso seja necessariamente uma perversão,
se tudo isso for o que chamam de amor.
Amor no sentido de intimidade, de conhecimento muito, muito fundo.
Da pobreza e também da nobreza do corpo do outro.
Do teu próprio corpo que é igual, talvez tragicamente igual.
O amor só acontece quando uma pessoa aceita que também é bicho.
Se amor for a coragem de ser bicho.
Se amor for a coragem da própria merda.
E depois, um instante mais tarde,
isso nem sequer será coragem nenhuma,
porque deixou de ter importância.
O que vale é ter conhecido o corpo de outra pessoa tão intimamente
como você só conhece o seu próprio corpo.
Porque então você se ama também.”
(Crônica Pela Noite, de Caio Fernando Abreu,
publicada no livro Triângulo das Águas)
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