domingo, 20 de janeiro de 2013

Se o outro for bom para você.

” Se o outro for bom para você. 
Se te der vontade de viver. 
Se o cheiro do suor do outro também for bom. 
Se todos os cheiros do corpo do outro forem bons. 
O pé, no fim do dia. 
A boca, de manhã cedo. 
Bons, normais, comuns. 
Coisa de gente. 
Cheiros íntimos, secretos. 
Ninguém mais saberia deles se não enfiasse o nariz lá dentro, 
a língua lá dentro, bem dentro, no fundo das carnes, no meio dos cheiros. 
E se tudo isso que você acha nojento for exatamente o que chamam de amor? 
Quando você chega no mais íntimo, 
No tão íntimo, mas tão íntimo que de repente 
a palavra nojo não tem mais sentido.[…] 
O que é que você queria? Rendas brancas imaculadas? 
Será que amor não começa quando nojo, 
higiene ou qualquer outra dessas palavrinhas, desculpe, 
você vai rir, qualquer uma dessas palavrinhas burguesas e 
cristãs não tiver mais nenhum sentido? 
Se tudo isso, se tocar no outro, 
se não só tolerar e aceitar a merda do outro, 
mas não dar importância a ela ou até gostar, 
porque de repente você até pode gostar, 
sem que isso seja necessariamente uma perversão, 
se tudo isso for o que chamam de amor. 
Amor no sentido de intimidade, de conhecimento muito, muito fundo. 
Da pobreza e também da nobreza do corpo do outro. 
Do teu próprio corpo que é igual, talvez tragicamente igual. 
O amor só acontece quando uma pessoa aceita que também é bicho. 
Se amor for a coragem de ser bicho. 
Se amor for a coragem da própria merda. 
E depois, um instante mais tarde, 
isso nem sequer será coragem nenhuma, 
porque deixou de ter importância. 
O que vale é ter conhecido o corpo de outra pessoa tão intimamente 
como você só conhece o seu próprio corpo. 
Porque então você se ama também.”

 (Crônica Pela Noite, de Caio Fernando Abreu, 
publicada no livro Triângulo das Águas)


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